A Câmara fez a coisa certa – Editorial O Estado de S.Paulo
Câmara cumpre sua função de contrapeso ao corrigir distorções criadas pelo STF na fixação de penas aos golpistas. A punição aos ataques contra a democracia deve se pautar por justiça, não vingança
A Câmara dos Deputados cumpriu sua função no sistema de freios e contrapesos ao aprovar o substitutivo do deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP) ao Projeto de Lei 2.162/23, o chamado PL da Dosimetria. Por ampla maioria, a Casa abriu caminho para a correção das barbaridades jurídicas cometidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na fixação das penas aos condenados pela trama golpista.
De antemão, é importante frisar: as penas cominadas aos crimes contra o Estado Democrático de Direito não foram reduzidas.
Tampouco criminosos foram anistiados. Houve, isso sim, uma correção necessária na interpretação que se faz dos crimes de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, previsto no art. 359-L do Código Penal, e de tentativa de golpe de Estado, tipificado no art. 359-M do mesmo diploma legal. E isso, sim, desborda em uma nova fórmula de cálculo da reprimenda a esses delitos.
Prevaleceu na Câmara o entendimento, correto, de que é aplicável aos réus pela trama golpista o instituto do concurso formal, previsto no art. 70, caput, do Código Penal. Segundo essa regra, quando dois ou mais crimes são praticados mediante a mesma conduta e no mesmo contexto, o mais grave “absorve” os menos graves. Vale dizer, aplica-se ao criminoso a maior das penas, se os delitos forem distintos, ou apenas uma delas, se idênticos – aumentada de um sexto até a metade.
O concurso formal, no caso dos dois tipos penais citados acima, deveria ter sido observado pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo STF desde o início do julgamento, mas, lamentavelmente, não foi, o que levou a uma resposta estatal tão aberrante que a própria temperança do STF foi questionada por boa parte da sociedade.
O incrível caso da cabeleireira Débora dos Santos, condenada a nada menos que 14 anos de prisão por ter pichado a estátua da Justiça em frente ao STF armada de um batom, é só o exemplo mais gritante dessa injustiça.
Desde 2021, quando foi editada a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, não há consenso nos meios acadêmico e jurídico sobre a distinção entre o art. 359-L e o art. 359-M do Código Penal. São tipos com estruturas semelhantes, que descrevem condutas frequentemente sobrepostas no curso de um mesmo contexto criminoso: subversão à força da vontade popular manifestada nas urnas.
É quase intuitivo presumir que quem tenta abolir violentamente o Estado Democrático de Direito também tenta um golpe de Estado. Diante dessa afinidade ontológica entre os dois crimes, aplicar penas cumulativas, como se fossem tipos independentes, não raro leva a distorções.
Dito isso, por ora é prematuro afirmar quanto tempo mais o ex-presidente Jair Bolsonaro permanecerá preso em regime fechado. O projeto aprovado pela Câmara é, sim, mais benéfico para todos os condenados, mas não modificou as penas mínimas e máximas previstas para os crimes pelos quais foram julgados.
Ou seja, caso o Senado aprove o PL da Dosimetria e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva o sancione, caberá exclusivamente ao STF recalcular as penas aplicadas aos réus à luz da nova lei. Logo, qualquer estimativa fora dos autos, como alguns logo passaram a fazer, não passa de especulação.
Em um país civilizado, a legislação penal não se presta à vingança, mas à justiça. O que se busca é assegurar que o direito do Estado de punir criminosos com a privação da liberdade seja exercido com racionalidade e proporcionalidade. Ao recuperar esse primado elementar do Direito, particularmente ao resgatar o concurso formal da sanha punitiva contra os golpistas, a Câmara impediu que os erros de superposição de condutas típicas cometidos pela PGR e pelo STF produzissem penas draconianas, para além de qualquer lógica jurídica.
O Judiciário, de fato, tem de punir com rigor aqueles que atentaram contra a ordem constitucional vigente. Mas, igualmente, tem de garantir que cada réu responda exatamente pelo que fez, e não por uma soma arbitrária de imputações indistinguíveis entre si.
Ao fim e ao cabo, a Câmara deu uma solução política para um problema jurídico causado pelo Supremo. Cabe agora ao Senado e ao Executivo completar esse percurso. No regime democrático, o combate ao golpismo não se fortalece com abusos, mas com a reafirmação dos limites que a lei impõe ao direito de punir do Estado e do próprio ideal de Justiça (Estadão, 11/12/25)

