Gilmar fragiliza imagem do STF com blindagem absurda – Editorial Folha
- Ao mudar Lei do Impeachment, ministro avança de modo descabido sobre prerrogativa do Legislativo
- A soberania popular é um dos pilares mais valiosos da Constituição, e não cabe ao Judiciário limitá-la, sobretudo em benefício próprio
Fã ou "hater"? A pergunta, em tom jocoso, circula na internet sempre que alguém age de forma ambígua em relação a outra pessoa, grupo ou instituição. Pois a dúvida, com doses reforçadas de sarcasmo, se aplica agora a Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.
Com uma canetada leviana, o ministro suspendeu trechos da Lei do Impeachment que tratam do afastamento de membros do STF. Sua decisão de quarta-feira (3), individual e provisória, ainda passará pelo crivo de seus colegas —e espera-se que tenham o discernimento que faltou a Gilmar.
O decano da corte se manifestou em ações propostas pelo Solidariedade e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Em termos rebuscados, sustentou que alguns dispositivos da lei são incompatíveis com a Constituição de 1988. Em palavras simples, ele blindou os ministros do Supremo contra processos por crime de responsabilidade.
Para Gilmar, a lei está ultrapassada ao permitir, por exemplo, que qualquer cidadão apresente ao Senado um pedido de impeachment de integrantes do STF. O caminho legítimo, na visão distorcida do ministro, seria que apenas o procurador-geral da República pudesse fazê-lo.
É estarrecedor que um magistrado tão experiente enuncie tamanho disparate. Primeiro porque a soberania popular é um dos princípios mais valiosos da Constituição em vigor, e não caberia ao Poder Judiciário limitá-la, sobretudo em benefício próprio.
Ademais, o artigo 41 da lei, alvejado por Gilmar, também autoriza qualquer cidadão a denunciar o procurador-geral da República por crimes de responsabilidade. A valer a lógica confusa do decano, somente o procurador poderia processar a si próprio?
A Lei do Impeachment, isto deve ficar claro, está longe de ser perfeita. Datada de 1950, ela já embasou ações pelo afastamento de dois presidentes eleitos sob a égide da assim chamada Constituição Cidadã, Fernando Collor e Dilma Rousseff, mas isso não a livra de lacunas e contradições.
Modernizá-la é necessário. Tal missão, porém, compete ao Congresso Nacional, não ao STF. Este deve se recolher, como fez no passado, ao papel de supervisor da aplicação da lei e da Carta Magna, assegurando que sejam seguidos à risca os procedimentos ali estabelecidos, sem espaço para manipulações oportunistas.
Gilmar tomou o sentido contrário. Talvez se enxergando como último bastião da democracia, resolveu reescrever a lei com o próprio punho, decerto no intuito de proteger o STF contra eventuais investidas de senadores ávidos por se vingar da corte.
Ao usurpar prerrogativa do Legislativo, porém, o ministro abala a já debilitada credibilidade do Supremo. Contribui para torná-lo mais fraco, não mais forte. Favorece o argumento daqueles que, nem sempre com razão, criticam a corte por seu apetite de poder.
Até os maiores inimigos do Supremo têm dificuldade de provocar estrago desse quilate (Folha, 5/12/25)

