Juiz não é árbitro de luta política – Editorial O Estado de S.Paulo
O STF fez escola. Ao censurar uma postagem de Nikolas Ferreira, que chamou o PT de ‘Partido dos Traficantes’, um juiz de Brasília interferiu em uma disputa retórica que não lhe compete apitar.
O juiz Wagner Pessoa Vieira, da 5.ª Vara Cível de Brasília, cometeu um grave erro ao determinar que a rede social X removesse uma publicação do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) na qual o parlamentar se refere ao Partido dos Trabalhadores (PT) como “Partido dos Traficantes”. Por óbvio, Nikolas explorou politicamente o fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter dito que “traficantes são vítimas dos usuários” de drogas.
Ao intervir em uma lide essencialmente retórica, o Judiciário ultrapassou as fronteiras de sua competência constitucional e invadiu o terreno próprio da política. A democracia implica confronto de discursos, ainda que sejam ásperos, exagerados, injustos ou mesmo mentirosos. Na arena política, respostas a palavras como as do deputado mineiro são dadas com palavras, não com decisões judiciais. A Justiça não tem o papel de policiar o discurso de deputados eleitos pelo voto popular, muito menos de higienizar o debate público.
A disputa político-partidária no Brasil é notoriamente ácida, por vezes agressiva. O próprio PT, ao longo de sua trajetória, produziu ataques e slogans muito mais duros contra seus adversários. Não causaria espanto se algum de seus parlamentares, reagindo à provocação, se referisse ao PL, partido de Nikolas, como “Partido dos Ladrões” – lembrando que o presidente da legenda, Valdemar Costa Neto, já foi condenado a sete anos e dez meses de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Membros do clã Bolsonaro, filiados à mesma sigla, são suspeitos de praticar a chamada “rachadinha” em seus gabinetes parlamentares. Por mais rudes que sejam tais trocas de ofensas, isso faz parte do jogo político e deve ser enfrentado dentro dele, e não sob a tutela de um Judiciário censor.
Na decisão, o juiz Wagner Vieira argumentou que não há que se falar em imunidade parlamentar quando houver propagação de “notícias falsas” ou “discurso de ódio”, citando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual essa proteção não pode servir de “escudo para atividades ilícitas”. Eis o dano que o STF causou à liberdade de expressão no País. A tese estapafúrdia conferiu a todos os juízes brasileiros o enorme poder de definir, ora vejam, o que é “verdade” e o que é “ódio”.
A Constituição é cristalina ao estabelecer que deputados e senadores são “invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Essa imunidade existe justamente para proteger o livre exercício do mandato e assegurar que o debate político, por mais lamentável que seja, ocorra sem medo de represálias judiciais. É um instrumento de defesa da democracia representativa, não um privilégio. Quando um juiz passa a decidir quais opiniões ou discursos de parlamentares são aceitáveis, sobrepõe-se à vontade popular às raias do arbítrio.
O conceito expansivo de “discurso de ódio” e o uso indiscriminado da noção de “fake news” têm servido, cada vez mais, como muleta para limitar a liberdade de expressão no Brasil. O STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) vêm construindo uma jurisprudência que, sob o pretexto de proteger a sociedade de si mesma, concede ao Estado o enorme poder de censurar conteúdos publicados nas redes sociais. Às vezes, nem isso, exercendo censura prévia ao ordenar a suspensão de perfis. Como o exemplo vem de cima, o ânimo censório agora se reproduz nas instâncias inferiores, com juízes assumindo o papel de árbitros do debate político.
Em uma sociedade aberta, o preço da liberdade de expressão é conviver com o que desagrada. A democracia não exige que todos os discursos sejam elegantes ou verdadeiros, mas que todos possam ser expressos e contestados. Os que constituírem crime, evidentemente, têm de ser penalizados. Mas não era o caso julgado. O que o magistrado fez foi decidir o que pode ou não ser dito sobre um partido político – e isso tem nome: censura.
A intervenção judicial em temas políticos deseduca o eleitorado. Quando um juiz se arvora em tutor das discussões políticas, usurpa uma prerrogativa que pertence aos eleitores (Estadão, 9/11/25)

