04/12/2025

O último prego no caixão da democracia brasileira – Por Paula Sousa

O último prego no caixão da democracia brasileira – Por Paula Sousa

Foto Antonio Cruz-Agência Brasil

 

Se você ainda tinha alguma dúvida sobre o estado terminal da nossa República, o ministro Gilmar Mendes fez questão de confirma-las. Não foi um susto, nem um tropeço institucional. Foi a execução fria e calculada de uma democracia que, sejamos honestos, já vinha respirando por aparelhos há anos. Nesta fatídica decisão, o Supremo Tribunal Federal não apenas legislou; ele se autoblindou, reescreveu a Constituição para uso próprio e, num gesto de total desprezo, declarou o Senado Federal uma peça decorativa inútil.

 

O ato foi a materialização da expressão “O Estado sou eu”, mas dito com a autoridade de quem não precisa sequer disfarçar. O recado foi dado: o povo já não decide nada, o Congresso já não controla nada, e a Justiça passou a interpretar a lei apenas do jeito que ela própria quer.

 

A receita venezuelana: Quando a juristocracia degola o Parlamento

 

Para quem insiste em manter os olhos fechados, a história que se desenrola em Brasília não é nova. É uma reprise de quinta categoria, o mesmo roteiro que vimos ser encenado em nações vizinhas que caíram no abismo do autoritarismo. A analogia com a Venezuela de 2017 é mais do que um alarme; é um espelho.

 

Naquele ano, a democracia venezuelana deu seu último suspiro quando a Assembleia Nacional, eleita com maioria de oposição, foi esvaziada. O que aconteceu? Um órgão 100% governista, a Assembleia Constituinte, assumiu para si os poderes do parlamento. Decretou que legislaria sobre "qualquer assunto" relacionado à manutenção da paz, segurança, proteção da democracia e soberania. A Suprema Corte, aliada ao ditador narcoterrorista Nicolás Maduro, assumiu as funções do Congresso, gerando a crise que culminou na usurpação.

 

Agora, olhe para o Brasil. O que fez Gilmar Mendes? Tomou uma decisão monocrática que subtrai do Senado Federal—o poder que, pela Constituição, é o único responsável por julgar e processar Ministros do STF—a capacidade de iniciar um processo de impeachment. Ao centralizar esse poder nas mãos do procurador-geral da República, ele está, na prática, delegando a chave do seu próprio cofre a um porteiro de sua confiança. É o Judiciário determinando, por conta própria, como e quem pode ser fiscalizado pelo Legislativo.

 

O resultado é idêntico ao da Venezuela: um poder se coloca acima do outro, concentra funções e retira do povo (e de seus representantes) o direito de fiscalizar. O Mercosul, à época, condenou a Venezuela por ter um órgão usurpando as atribuições da Assembleia Nacional. O que diremos agora que a própria Suprema Corte brasileira está usurpando a competência privativa do Senado?

 

Os três pilares da blindagem nível hard

 

A decisão de Gilmar Mendes não foi um simples ajuste legal; foi uma reengenharia institucional para tornar o impeachment de um juiz do STF algo mitológico, uma lenda urbana. Ele atacou a lei de 1950 em três frentes principais:

 

  1. O porteiro perpétuo: O ministro anulou a expressão "a todo cidadão" do artigo 41 da Lei do Impeachment. Antes, qualquer brasileiro podia denunciar. Agora? Somente o PGR pode formular a denúncia. A coincidência, claro, é hilária: o PGR, Paulo Gonet, foi indicado pelo presidente, foi sabatinado e depois reconduzido pelo Senado e, invariavelmente, trabalha em conjunto com os ministros do STF. Quem, em sã consciência, acredita que um PGR vai querer abrir uma crise institucional desse tamanho contra seus colegas de Brasília? É a garantia de que, com esse filtro, a chance de impeachment se torna zero.

 

  1. O muro dos dois terços: O golpe de misericórdia veio na mudança do quórum. Gilmar Mendes reescreveu a lei para exigir dois terços (2/3) dos votos do Senado (54 senadores) apenas para iniciar o processo de impeachment. A lei original e o entendimento até então estabelecido exigiam apenas maioria simples (2/3 da votação era apenas para a condenação final). Mudar o quórum de início é o mesmo que transformar a porta de entrada numa fortaleza.

 

  1. O Salário Protegido: Por fim, a cereja do bolo da blindagem. O ministro denunciado não será mais suspenso de suas funções nem perderá seu salário ao ter o processo de impeachment aceito. Se o presidente da República, o procurador-geral ou qualquer outra autoridade acusada for afastada e sofrerá as consequências imediatas, o ministro do STF não. Afinal, por que o coitado teria que sobreviver apenas com consultorias e o escritório de advocacia da família, sem seus vencimentos integrais? É um absurdo que contradiz a lógica de todos os outros processos de impeachment do país.

 

E, claro, para fechar com chave de ouro, a decisão também reforça a ideia de que o mérito das decisões judiciais não pode ser enquadrado como crime de responsabilidade. Na prática, isso permite que Ministros prendam metade do país, censurem redes sociais, montem processos absurdos e condenam pessoas por usar o Facebook, sem que o teor dessas decisões jamais possa ser questionado pelo Congresso. A toga virou uma mordaça para o povo.

 

A verdadeira motivação: Pânico e autoproteção

 

Se a decisão fosse apenas sobre legalidade, o debate seria outro. Mas o que a expõe como um ato desesperado de autoproteção é o contexto político, que foi o que o ministro de fato mirou. A direita, eufórica com a possibilidade de eleger uma maioria folgada no Senado em 2026, viu no impeachment a única forma legítima de impor limites ao Judiciário. A decisão de Gilmar Mendes implode essa estratégia eleitoral.

 

Mas há uma motivação ainda mais imediata, que o professor de direito constitucional da UFF, Gustavo Sampaio, resumiu com precisão em entrevista à CNN. Ele disse que essa decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes dá a entender que o STF poderia estar se protegendo da crise institucional em Brasília. Ele aponta que, por conta da crise entre Alcolumbre e Lula, o presidente do Senado, poderia "desarquivar alguns processos de impeachment contra alguns juízes".

 

A lógica é cristalina. O STF percebeu que a fraqueza política de seus aliados no Legislativo e os ventos de mudança no Executivo poderiam fazer com que antigos desafetos tivessem a coragem de usar os instrumentos legais que lhes restam. A decisão, portanto, não é sobre a Constituição; é sobre medo. É o pânico institucionalizado que levou um juiz a reescrever o ordenamento jurídico em causa própria, sob o pretexto de defender a "democracia suprema" que ele mesmo está minando.

 

A humilhação do Congresso e o “choque” da imprensa

 

A blindagem do STF é, antes de tudo, a humilhação pública e irreversível do Senado Federal. Para que servem, afinal, os 81 senadores? Para correr atrás de emendas? Para soltar tweets indignados e esbravejar na tribuna para uma plateia vazia? A decisão de Gilmar Mendes responde: para nada.

 

O ministro demonstrou um desprezo total pelo Poder Legislativo, transformando a competência privativa do Senado em uma piada. Ele basicamente disse que o Senado não é maduro o suficiente para receber um pedido de impeachment de um "simples cidadão" – como se o presidente do Senado fosse aceitar um guardanapo escrito com giz de cera sem qualquer filtro técnico. Não, o filtro agora é o PGR, o "amigo do rei", garantindo que a conveniência política se sobreponha à fiscalização popular.

 

E o que dizer da imprensa brasileira?

 

Lembram-se da “PEC da Blindagem” proposta pelo Congresso? A mídia fez um circo dantesco, um verdadeiro carnaval histérico, taxando-a de “ataque à democracia”. Jornalistas espumavam pela boca enquanto todo o establishment se mobilizava contra a simples tentativa do Parlamento de se proteger e conter os avanços do STF. É a mesma mídia que vestiu a camisa da cruzada moral contra qualquer suposta “ameaça à democracia” vinda da direita — um contraste de revirar o estômago.

 

Hoje, o STF apresenta sua própria versão, nível Godzilla, dessa blindagem: um escudo impenetrável que torna juízes intocáveis.

 

E o que vemos? Uma gritaria cínica, um protesto encenado por quem só agora parece notar que o monstro que ajudou a alimentar — com o único propósito de derrotar um inimigo político — pode estar pronto para devorar o próprio criador. A hipocrisia é o atestado de óbito da credibilidade, revelando que, para muitos, a democracia nunca passou de ferramenta tática, não um princípio inegociável.

 

O despertar tarde demais

 

Para quem dormia, está na hora de acordar. Para quem apoiou cegamente este regime judicial por ódio a Bolsonaro, o momento é de esfregar o nariz na própria sujeira. O ódio serviu como cortina de fumaça, e agora o resultado está aí: a defesa de um projeto político, seja ele qual for, não pode nunca vir a custo da dissolução do Estado de Direito.

 

A nossa República está virando, a olhos vistos, uma juristocracia, um regime onde os juízes mandam, legislam, julgam, governam e, o que é pior, se tornam inatingíveis pela lei que deveriam servir. A única relevância que resta ao presidente da República é a indicação de futuros ministros. E a única função que resta ao povo é pagar a conta desse circo.

 

Portanto, o que Gilmar Mendes fez não foi blindar um ou outro ministro; foi blindar a própria instituição contra a República. Ele sacramentou que a separação de poderes, um princípio fundamental da democracia, já não existe. O Brasil se junta ao panteão de nações que, por inação, covardia do seu Parlamento e o uso inescrupuloso do poder judicial, abdicaram da soberania popular em favor de uma oligarquia togada.

O último prego foi batido. Quem tem estômago, que enjoe. Quem tem coragem, que lute. Mas não diga que não foi avisado. (Paula Sousa é historiadora, professora e articulista; 4/12/2025)