21/05/2020

Sem alimentos, não há paz social - Por Francisco Turra

Sem alimentos, não há paz social - Por Francisco Turra

Francisco Turra responde artigo publicado no domingo (17) sobre a redução de abates durante a pandemia.

O sociólogo canadense Herbert Marshall McLuhan, em seu conhecido conceito de Aldeia Global, previa que os avanços tecnológicos encurtariam distâncias entre as nações. Esse fenômeno ficou ainda mais claro com a pandemia da Covid-19.

As informações circularam com mais fluência e rapidez, ao mesmo tempo em que experimentamos o alastramento do pânico. E claro que tal sentimento é um reflexo natural da gravidade do problema.

Os números de contágios e mortes dobram em um curto período. Alcançam pessoas próximas, entes queridos. É um novo tipo de guerra do nosso tempo. Mas, como numa guerra, há o medo real e há o medo estendido, provocado por divergência de informações, desconhecimento, interesses transversos ou mesmo má-fé.

A visão técnica muitas vezes se contamina pelo passional. E na ansiedade de explicar o ineditismo dos fatos, surgem comparações de padrões diferentes, como se o que ocorre em outras nações necessariamente se repete por aqui. Justamente essa busca por modelos internacionais, quando aplicada hermeticamente ao Brasil, gera muitos equívocos sobre o que se pensa ocorrer, por exemplo, no setor frigorífico do nosso país.

O noticiário nacional e internacional foi irrigado, nas últimas semanas, por informações sobre casos de Covid-19 em frigoríficos de diversos países, especialmente dos Estados Unidos. As notícias tratam de condições de trabalho aplicadas naquelas nações como um fator de contaminação. Relacionam a origem estrangeira dos trabalhadores dessas plantas como um fator agravante. E ressaltam a reação tardia e desordenada diante do quadro epidêmico.

 

No artigo “Frigoríficos devem reduzir abate para proteger trabalhador na pandemia”, publicado nesta Folha no último fim de semana, os autores Steffan Edward e Adroaldo Zanella, do Cecsbe/USP, discorrem sobre os efeitos da crise de saúde humana na produção de proteína animal norte-americana. Quando relacionam os fatos com o setor produtivo brasileiro, apontam que as dimensões das plantas americanas, muito maiores, são fator agravante. E concluem que essa característica seria a única vantagem do modelo instalado no Brasil.

De fato, as plantas brasileiras são menores. A produção é mais espraiada pelo país, o que é até um fator de competitividade do Brasil. A capilaridade nos favorece nas exportações, na manutenção da qualidade, no acesso a insumos e na preservação do status sanitário. Mas o trabalho do nosso setor produtivo para a preservação da saúde vai muito além disso. E aqui respondo à conclusão do artigo dos pesquisadores da USP, quando dizem que “É preciso agir. E é preciso agir agora”.

Contra a pandemia, agimos desde o primeiro dia, há mais de dois meses. Enquanto os estados ensaiavam a implantação das quarentenas em todo o país, o setor frigorífico já colocava em curso seus planos de contingenciamento. O primeiro deles foi o afastamento de todos os colaboradores identificados como grupo de risco (com idade acima de 60 anos, doenças pré-existentes e outros). Adicionalmente, fizemos a higienização dos frigoríficos —que já era rígida muito antes da pandemia, e foi intensificada ainda mais.

Desde as catracas até os corrimões, todos os pontos de contatos agora têm limpeza reforçada.

Outras medidas de higiene e proteção recomendadas pela Organização Mundial da Saúde há muito já eram rotina nas empresas, como higienização de mãos, utilização de solução de álcool 70% e orientações sobre espirrar e tossir.

Demais protocolos, típicos do sistema produtivo, tornam o ambiente ainda mais seguro. As vestimentas específicas são exemplo disso. Quem já entrou numa planta sob as regras do Sistema de Inspeção Federal, ou mesmo dos estados, sabe a rigidez dos controles.

Seguindo as orientações da Associação Brasileira de Proteína (ABPA), das entidades estaduais e de seus comitês internos, as unidades produtoras em todo o país implantaram, no início de março, novos protocolos voltados para a proteção dos trabalhadores.

São procedimentos constantemente atualizados, conforme as recomendações dos órgãos internacionais especializados. Ao mesmo tempo, legislações oficiais foram estabelecidas para fortalecer ainda mais a aplicação das medidas.

 

A Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia, o Ministério da Saúde e o Ministério da Agricultura expediram orientações destinadas especificamente aos trabalhadores e empregadores do setor frigorífico em razão da pandemia da Covid-19, que estão sendo observadas rigorosamente. A propósito, sob a batuta da competente ministra Tereza Cristina, sempre procuramos construir soluções responsáveis. O setor sabe quão decisiva é a sanidade na área de produção de alimentos.

Esses protocolos e regulações, dentre outros pontos, estabeleceram a medição de temperatura e o aumento da monitoria do estado de saúde dos colaboradores (o que já era rotina antes da epidemia). Medidas contra aglomerações também foram implementadas, especialmente nos refeitórios –em mesas que sentavam quatro, agora só sentam dois– e no transporte, com a contratação de mais ônibus exclusivos, reduzindo pela metade a taxa de lotação.

A maior mudança, no entanto, está na proteção individual à pessoa do trabalhador. Antes, o traje de trabalho deixava descoberto apenas a face. Agora, nem isso: de máscaras “ninja” a faceshield (proteção de plástico sobre o rosto), tudo busca proteger o ser humano. Em algumas unidades, a barreira lateral plástica entre os trabalhadores também foi inserida.

Fomos muito além das medidas simples, implantando em todas as unidades aquilo que chamamos de “busca ativa”, com levantamento completo e afastamento de qualquer colaborador que tenha ficado em contato direto com suspeitos de Covid-19.

Dentro e fora das plantas, as empresas adotaram diversas ações de comunicação para reforçar as orientações de cuidados. Vídeos, folhetos, instruções diretas pelos líderes de equipe, até mesmo campanhas nas tevês regionais foram realizadas, complementando a massiva divulgação dos cuidados preventivos feita pela imprensa. A própria ABPA produziu materiais e distribuiu pelos canais das empresas.

Os esforços do setor produtivo são grandes, mas eventualmente o passionalismo se sobrepõe à razão, gerando decisões graves e obtusas. Não podemos cair na generalização, na simplificação e no preconceito contra os setores produtivos.

Medidas radicais, como o fechamento de plantas processadoras e o abate emergencial, não podem ser tomadas com base em suspeitas e conjecturas. Os gestores do Executivo e os órgãos reguladores têm responsabilidade, também eles, de promover a estabilidade social.

Num ambiente de presunção e radicalidade, a única certeza é a de que sobrarão animais no campo e faltará alimento nas gôndolas. E, definitivamente, esse não é o melhor caminho. Portanto, a boa circulação de informações, prevista por McLuhan, não pode dar margem à insanidade passional, ao medo estendido ou ao pânico provocado –ainda mais em meio a uma pandemia global.

É preciso ter cautela e profundo rigor com as comparações. O setor frigorífico do Brasil é diferente das diversas nações, tanto pelos padrões adotados quanto pela proatividade com a preservação da saúde do colaborador.

A fiscalização dos órgãos estatais é a mais pesada do mundo, assim como nossos padrões produtivos têm mais rigor sanitário. É por isso que despontamos na área. Competência, comprometimento e respeito à vida são valores profundamente enraizados em nosso agro. Produzir alimentos é uma dádiva e uma vocação brasileira, que deve ser encarada como prioridade. Não há paz social ou quarentena possível sem oferta de alimentos. Isso é agora, foi ontem e será sempre (Francisco Turra é ex-ministro da Agricultura e presidente da ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal); Folha de S.Paulo, 21/5/20)