20/08/2025

Tarifaço desarticula a cadeia de produção das multinacionais no Brasil

Tarifaço desarticula a cadeia de produção das multinacionais no Brasil

Poll: tarifaço cria impactos profundos na estrutura produtiva da Voith Hydro montada ao redor do mundo. Foto: Rafa von Zuben

 

Conglomerados que têm parcerias estreitas com operações nos EUA, como a Voith Hydro no Brasil, veem estrutura entrar em xeque com taxação de 50% sobre produtos brasileiros.

 

Foi da fábrica da alemã Voith Hydro em São Paulo, que saíram, na década de 70, equipamentos que permitiram à Itaipu gerar energia. Também foram feitas lá as primeiras máquinas de Três Gargantas, a maior usina hidrelétrica do mundo, que fica na China. Além das de Guri, na Venezuela, Palo Viejo, na Guatemala, e Caculo Cabaça, em Angola, entre muitas outras. “A unidade brasileira é a maior do grupo na área de energia”, diz Hans Poll, presidente da Voith Hydro América Latina.

 

Mesmo com essa importância, a subsidiária é apenas parte de um quebra-cabeça produtivo. Como em toda multinacional, a Voith estruturou sua operação de modo que cada país tivesse uma especialização e um papel dentro do conglomerado, aprimorados e estruturados ao longo de anos. O tarifaço de 50% aos produtos brasileiros, imposto pelo presidente dos EUA, Donald Trump, porém, “quebrou as pernas” desse esquema.

 

“A unidade dos Estados Unidos, por exemplo, também é bastante grande, mas eles têm uma especialização diferente e nós complementamos a produção deles”, diz Poll. “Temos muito orgulho dessa relação que se estabeleceu há mais de 30 anos: os EUA são um mercado altamente exigente e temos produção de altíssima qualidade que os atende.”

 

Poll diz, inclusive, ser comum que os clientes americanos peçam para que determinados equipamentos sejam feitos no Brasil — e venham aqui acompanhar a execução, já que as máquinas podem levar até dois anos para ficarem prontas. “Eles gostam dos produtos brasileiros e há uma proximidade cultural que nos ajuda”, diz ele. “Ainda não recebi nenhuma carta dizendo: ‘cancele o pedido’, mas como esses produtos serão embarcados mais à frente, se a tarifa se mantiver, será uma situação muito complicada.”

 

Mundo crescerá menos

 

A Voith Hydro não é a única multinacional a coordenar a produção entre diferentes países. Segundo Maria Cristina Zanella, diretora executiva de competitiva economia e estatística da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) boa parte das exportações brasileiras são feitas entre companhias de um mesmo grupo industrial. No setor de construção civil, o porcentual de exportações do Brasil para empresas do mesmo grupo chega a 80%.

 

Lucas Ferraz, coordenador do Centro de Negócios Globais da FGV, diz que essa integração intra-industrial envolve não só os interesses dos próprios conglomerados, como também cadeias de fornecimento globais. “Todo o arranjo produtivo que envolve os EUA tende a ser afetado com as tarifas de Trump — e não só com o Brasil”, afirma.

 

Para ele, o mundo vem se fragmentando lentamente entre dois blocos: um sob influência de EUA e Europa e outro de China e Rússia. “É difícil prever onde isso vai parar, mas as empresas já estão se reorganizando por critérios que deixam de ser exclusivamente baseados em eficiência econômica e passam a ter maior peso da geopolítica”, afirma Ferraz.

 

A consequência, segundo Ferraz, será menor crescimento global. Segundo ele, o mundo levou mais de 70 anos para reduzir tarifas de bens industriais de 40% (média de 1947), para os atuais 5%. Cerca de 1,5 bilhão de pessoas deixaram a linha da pobreza e países conseguiram emergir como potências econômicas na nova realidade.

 

No caminho inverso, o governo Trump, de uma tacada só, passou a taxação americana de 2,2% para 18%, em média, com o Brasil. Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), a tarifa média com o mundo está em 20,1%. “É muito fácil elevar tarifas, mas muito difícil reduzir”, diz Ferraz. “Caso mantido o tarifaço, os lobbies dos grupos de interesse beneficiados vão ficar cada vez mais fortes e o custo político de baixar as tarifas tenderá a ficar muito alto.”

 

Pacotaço de energia de Biden multiplicou encomendas nos EUA

 

No caso da Voith Hydro no País, o tarifaço fez com que, com exceção de produtos primários e mais baratos, novas encomendas fossem suspensas. Em relação às em andamento, apesar de a Voith estar garantida contratualmente por eventuais mudanças em taxações, com o cliente arcando o custo extra, caso o tarifaço seja mantido, as renegociações parecem inevitáveis.

 

O impacto dentro da estrutura da empresa deverá ser grande. Do R$ 1,2 bilhão que a Voith Hydro fatura anualmente no Brasil, entre 20% e 30% são provenientes dos EUA. Com o pacote gigantesco de incentivos à energia renovável lançado no governo Biden, as encomendas naquele país triplicaram e parte acabou sendo deslocada ao Brasil — e com o tarifaço entram em uma espécie de xeque.

 

Mais do que queda na receita, o impacto afetará outras estruturas bem amarradas dentro da empresa. As exportações aos EUA, por exemplo, permitem balancear as cargas das fábricas: a que está com menos produção recebe encomendas e consegue diluir custos e manter sua rentabilidade.

Trump em uma tacada, tarifas com Brasil subiram de 2,2% para 18,5% em média. Foto- Julia Demaree Nikhinso AP

 

Outro efeito é no fluxo de caixa. Como muitos contratos de fornecimento no País são antigos e feitos com estatais antes de privatizações, os recebimentos não favorecem a empresa. “Nos contratos americanos, é diferente”, diz Poll. “Quando um produto é entregue, já recebemos 70% do valor, o que cria um fluxo de caixa extremamente atrativo.”

 

Além disso, as encomendas norte-americanas representam entradas em moeda forte, que criam uma espécie de proteção para insumos dolarizados.

 

fazer os exercícios por um tempo, vai ficar menos eficiente”, diz ele. “É o mesmo de uma fábrica, já que a partir do instante em que você perde um turno de máquina, manda uma mão-de-obra muito qualificada embora, cria um efeito em cascata que impacta também nos contratos nacionais.”

 

Com 1,2 mil funcionários, a Voith Hydro não enxerga demissões no radar por enquanto. “Temos uma mão-de-obra muito qualificada que, depois, é difícil recuperar”, diz Poll. “Mas se tivermos pedidos interrompidos, com o cliente sem condições de arcar o custo, aí vejo demissões.” Segundo ele, no ano fiscal que está se encerrando, a operação brasileira evitou cortes exatamente com encomendas provenientes dos EUA.

 

Opção pela negociação

 

Para as multinacionais, o pacote de auxílio do governo federal anunciado na semana passada tem pouco ou nenhum impacto. As operações locais são mantidas com os lucros gerados no próprio país e qualquer investimento mais pesado é financiado pela matriz. “O governo precisa é negociar”, diz Poll.

 

Para ele, uma das ferramentas poderia ser a inclusão do Brasil no Trade American Act (TAA), tratado que dá prioridade a transações entre determinados países com empresas americanas, e do qual o Brasil não é signatário. Sem ela, a Voith local, inclusive, não consegue participar de negócios pesados com aquele país.

 

“O que pode acontecer é, se uma situação dessa se perdurar e não houver recuperação no mercado brasileiro, teremos de defender a produção no Brasil junto à matriz”, diz ele. “Hoje a situação não está crítica, mas é uma questão discutida de tempos em tempos, que parece mais difícil à frente.” (Estadão, 20/8/25)